segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

sud-expresso

Dia 1. 18:30. A bordo. O dia tinha começado com um sonho (embora ele já viesse sendo encubado e tornado necessário há umas semanas. E que semanas, as mais terríveis de que tenho notícia por sinal). Tecnicamente não fugi. Saí pela porta da frente com a cabeça levantada (não pela janela com o rabinho entre as pernas). O que foi preciso? Não pensar muito no que poderia correr mal. O que penso dos que ficaram? Bem, porque não me ligam eles? Sim, não lhes deixei solução (sim, fazia parte do plano). Onde encontrei o desfarce para todo este teatro e quem me deu este papel? Suponho que a necessidade aguça o engenho, ou algo do género.

"Atenção senhores passageiros vai dar entrada na linha 1 Norte o comboio sud-expresso com destino a Hendaye e ligação a Paris." Esta é a lenda de como facilmente me apaixonei por uma cabine quente de um comboio internacional num dia nada brilhante e com as roupas coladas ao corpo de suor e de chuva. Não se trata de um qualquer urbano com cheiro a quotidiano. É sim, literalmente, um modo de vida.

O mais intenso de tudo isto é a óbvia constatação de quão largo é o espectro de vontades humanas. Vejamos. A rapariga de Madrid (mas que já viveu em tantos outros sítios que não tenho a certeza que ainda saiba onde é o seu lugar) que faz o seu doutoramento em Coimbra sobre um qualquer tema relacionado com África estranha as expressões "praí" e "oh pá" com tanta usança no nosso Portugal e fica indignada por tudo ser simplesmente fixe e que nada mereça por parte do lusitano coisas mais requintadas como bonito, maravilhoso,... O brasileiro, que não se cansa de dizer que são os playboys que mantêm o negócio de coca nas favelas, sonha em voltar ao seu bem amado sertão salino para curtir as poupanças de uma vida enquanto se delicia com sexo a tempo inteiro e faz questão de assinalar "não fumo, não bebo e não uso drogas". O desgraçado de Paços de Ferreira trabalha em França e pouco ou nada tem para dar a esta prosa. O tipo de Boston (Charlie, acho) já fez os EUA from coast to coast driving on his own e agora ensina (ou tenta, não estou certo de que seja possível!) inglês a crianças da capital espanhola e termina dizendo "unless i find a pretty spanish woman i can't live without i'll go back to my country". O belga está de passagem e segue para Portugal estando eu certo que o assustei quando tomando-o por castelhano lhe falei o meu bom português! Esta é a diversidade do mundo, e, ipsis verbis, a única das suas qualidades que até ao dia de hoje apreciei.

Em Vilar Formoso ainda se trocam locomotivas (fez-me lembrar uma estação de posta vinda do tempo dos meus antepassados). Mas finalmente, sou lá, na terra perdida. Solto na noite e com o mapa do tesouro na mão lanço-me na procura da estalagem onde finos lençois me esperavam. Tudo correu bem.

Dia 2. Salamanca. Minha pobre alma surge inundada, e por pouco minhas lágrimas não fizeram o Tormes corar de vergonha, por um questão trivial. Encontrarei, quando voltar, a fechadura da porta mudada, ou a estação da minha terra eclipsada ou, resumidamente, o meu antigo mundo esfumado? Que importa isso?

Nada mais exótico do que ouvir falar a língua de Shakespeare em terras de Cervantes (ainda que a despedida de duas conhecidas se faça com o sempre sensual "hasta luego"). Mas, fora divagações vos digo, esta princesa só dorme entre a primeira e a quinta hora da tarde. Tudo fervilha freneticamente numa cidade em que a universidade, a cultura, o património e as gentes parecem andar de mãos dadas e falar todas ao mesmo tempo (cada uma mais alto que a outra, para que se faça ouvir!).

Dia 3. Plaza Mayor. Olho à volta. Os sinos tocam uma qualquer hora fazendo uma banda sonora terrivelmente comovente e que me faz encher o peito de orgulho. Que me faz respirar fundo e olhar o céu sem temer. Conselho incipiente: viajar não é correr para a entrada de museus e catedrais, absorver a história e não ligar a nada mais, é sim tomar-lhes a pulsação à terra e às gentes e deixarmo-nos neste grandioso contemplar ao qual a única coisa que vem pesar é minha solidão ardente. Não ardente como uma fogueira, mas como uma vela, que a pouco e pouco mas assiduamente vai lambendo o pavio e chorando sua cera.

Dia último. 01:00. Estação. Bem, penso que a viagem não acaba aqui. Verdade? Quando não há um lugar a que voltar nada acaba. Continuarei a percorrer meus caminhos interiores a cada dia da minha vida como se fosse a primeira vez que o fizesse. A cada momento que dobro esta esquina reparo em mais algum pormenor. Diferente, irreverente...

É inegável. Todos nós teremos um dia de nos perder nas ruas da cidade e amá-la sem medo do frio das pedras da calçada. Poderia aqui repetir a história de que até o mais duro, ao fim de um dia absolutamente normal precisa de uma nesga de carinho e atenção. Mas não me vou dar a sentimentalismos (deixemos isso para outro dia) e direi que se fosse cavalo, era um puro sangue a trotar por esse mundo fora.

Tomei-lhe o pulso. Este será o prólogo de um "viver para contá-la".

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