sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

grunhês

Eram dois. O primeiro foi tirado do cubículo e à força de dez homens colocado em cima do estrado. Amarrado por cordas e mal podendo respirar sentiu que o que quer que se fosse passar ali, depois disso, a sua vida jamais seria o que era e haveria de ser diferente. Uma pontada na garganta fê-lo gemer. O frio da lâmina e o quente do seu sangue criaram uma mistela morna, como que um derramamento de alma. Sufocou o grito seguinte, não o fossem tomar por cobarde. Mas o fio cortante continuou o seu caminho numa jornada que, lhe pareceu, durou anos. As pessoas em seu redor não se limitaram a tirar-lhe a vida. Exigiram-lhe que sangrasse toda a sua força em gritos lancinantes e riram-se por ter defecado de dor.

O outro, até agora não mencionado, estava congelado dentro das suas quatro paredes. Qual a fonte de todo aquele lamento intempestivo? Deu com a testa na porta. Deu com as pernas. Tentou a moda do cavalo. Mas nada, aquela porta comportava-se como se lhe tivessem dado a profissão de pedra tumular. Os gritos tornavam-se mais ténues a cada avanço. Finalmente, nada mais se ouviu. E agora ele voltará, suspirou aliviado. Esperou, desesperou... Inútil. Jamais regressaria aquele a quem calou as palavras de ontem por não querer ouvir mais mentiras. Para todo o sempre e um dia ficaria com a imensa necessidade de exprimir os sentimentos que guardara para si na noite anterior. Porque eram para ele. E talvez lhe fossem tão úteis como um farnel para a viagem. 
Mas porque foi ele chorar para os campos e a que conclusão chegou para não mais ter voltado? A culpa é minha, a culpa é dele, da circunstância que nos rodeia que não nos foi favorável e violentou-nos como os ventos do Norte?

Já o primeiro, a esta hora rodeado de quarenta virgens, engolia borboletas para que lhe fizessem prurido no estômago. Infligia-se a si próprio uma mágoa colossal por ter partido sem avisar, mesmo sabendo que não houve oportunidade. Porque não tivera ontem a força que lhe sobeja hoje para acarinhar todos os lamentos do outro? Porque se rendera ao cansaço e deixara cair no campo de batalha o estandarte que, de há muito, era orgulhoso e guloso portador?

Em uníssono mas sem saberem que o faziam grunhiram: o que calar hoje, calarei para sempre! Não mais será o dia e o que quereria exprimir será corrompido pelo tempo, pelas gentes, e pelas paisagens. E se hoje calo o que teria para te dizer é porque hoje não estás no teu lugar. Não porque não tenha nada para te dizer.

O que me quebra a cabeça é que não sei qual dos porcos sou: se o que foi, se o que ficou.

Mas que tal dúvida não me fique. Já se ouvem as botas bater o chão em ritual, as varas estão no ar e os nós apertam-se. É a vez de o outro, o que ficou, espernear-se e quem sabe, percorrendo a escada que sobe ou a que desce conhecer o verde dos longos trilhos do paraíso (cuja entrada, um dia a descrevemos, era uma praia deserta com uma torre de vigia em madeira encimada pelo sol de inverno, aquele que nos tira da depressão) ou o quente e cinza do ardido.

Hoje exceder-me-ei nos vícios. Farei por merecer os fardos que transporto. Quando a luz do novo dia chegar tudo se manterá como num pesadelo que não passa ao acordar. Mas que interessa tudo isto se feridas não se curam sem ardor?

Se imaginar as entranhas do meu cérebro como uma casa, sou capaz de o descrever melhor. A sala de estar poeirenta e sem vida. A casa de banho com a sanita entupida. O quarto com o meu corpo pesado. E o sotão, para onde atiro tudo sem me atrever a lá entrar. Quando a estreita entrada se enche com uma vara empurro o que está lá dentro. Tudo bem amassado. Sem ordem alfabética ou ordinal, uma torre do tombo depois do tombo e não antes, quando ainda era um arquivo nacional.

Mas sei que falo grunhês e o que para mim é um triatlo pelo meu pensamento, aos de fora será um belo conto, parábola talvez. Sua moral a ninguém arde e rapidamente se esquece. Porque textos, qualquer Pessoa os faz (nem que para isso fume o seu baseado).

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