Sempre, antes de me deitar, alinho a margem inferior da folha vazia com o limite da secretária. Perfeitamente paralela à margem lateral esquerda, a uma distância uniforme de três dedos, deixo que descanse a caneta. Até aqui a melodia é serena e com maior ou menor esforço consigo que o sono e o sonho se fundam numa só pedra filosofal.
Mas, invariavelmente, quando os primeiros fios dourados ameaçam trazer a claridade os sinos repicam-se e os violinos esfregam-se a um ritmo desenfreado, melodramático. Todas as manhãs encontro a folha amarrotada em forma de Terra e a caneta, sangrada, espetada de um lado a outra como eixo de rotação desta bola de papel. Ao observar este cenário recordo-me, também invariavelmente, de que tinha algo sobre que escrever. Passado, recordações, sentimentos, euforias, calores, frios, ansiedades, planos,... Era um livro de histórias, um romance em Verona, umas memórias, um ensaio filosófico, uma teoria política, uma patente, um teorema,... Esfumou-se. Perfeito: dado o trabalho racional do dia anterior como perdido começa a ficar tarde e tenho de começar a teorizar para que amanhã, sim esse vai ser o dia, consiga ao menos inspirar o título.
E isto sempre, em eterno retorno. Começo a pensar se não estarão as ursas, a maior e a menor, com a ajuda da polar de alguma forma a conspirar, preparando-me, todas as madrugadas, o cenário que torna vãs as minhas ligeiras progressões.
Poderia, uma vez, experimentar escrever pela noite e espantar de vez o vilão mostrando que até sou capaz. De escrever o pensado, pensar o escrito e assim triunfar entre duas realidades que, para sentirem que estão em casa, chamam sempre a sua irmã, Solidão.
Talvez um dia, quem sabe.
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